HUBRIS: A Vida Em Delito
Para Pensar e Desenhar a Vida Em Comum
Texto Ivo do Carmo
Lisbon Portugal 2019
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Translated by Crystal Kershaw
Em 1994 foi publicado um ensaio conspirador e de contornos de literatura noir. David Ronfeldt preparou um estudo para a CIA, para o Office for Reserche and Development, acerca do Complexo Húbris – Nemesis. Este estudo (“Beware the Hubris-Nemesis Complex, A Concept for Leadership Analysis”), encomendado pela Divisão de Investigação de Segurança Nacional, enquadra-se no que durante a Guerra Fria se designou de futurologia e hoje é conhecido por prospectiva (Forsight). Um pensamento estratégico e multidisciplinar, articulado a partir da teoria dos jogos, que visa sobretudo antecipar cenários a longo prazo em sectores chave como a ciência, economia, sociedade, tecnologia e ambiente.
Com uma evidente componente militar e fortemente desenvolvida até ao delírio durante a Guerra Fria, a futurologia emerge não como um desiderato criativo e emancipador da humanidade mas como a ciência do Armagedão. Nesse período o elefante na sala é a bomba atómica e o futuro é vislumbrado como um lugar terminal de um devir histórico à mercê dos anátemas das circunstâncias políticas do presente.
Este delicioso e prolífero campo de estudos serviu de inspiração a Stanley Kubrick para rodar Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb – uma sátira negra que leva ao deboche as teses de Herman Kahn.
Herman Kahn celebrizou-se como notável Think Tank da RAND Corporation, uma ONG que presta consultoria à CIA (a mesma que publicou em meados dos anos 90 o relatório de David Ronfeld). Sob o lema de “pensar o impensável” Herman Kahn defendeu que é necessário prever o pior. E dentro do pior antecipar o possível, o provável e o preferível, tudo – claro está – dentro do pior dos mundos possíveis.
A CIA leva a distopia a sério, e é nesse contexto que surgem estudos muito sui generis, dissertações híbridas de ficção científica e mitologia grega – matéria prima da futurologia – dignas de uma estética Marvel sci-fi abundante em heróis e arqui-inimigos.
No estudo sobre a húbris, citado no início, lemos que se trata de um termo grego que oferece várias traduções e que significa “tudo aquilo que passa da medida”, uma forma de desmesura e violação. A húbris é expressão de uma afronta insultuosa aos deuses, um delito gravíssimo que despoleta a ira vingativa dos céus. Os actos hubrísticos são por isso punidos pela deusa Nemesis, que na mitologia significa aquela que “dá de volta o que é devido”.
Os mitos fundadores oferecem um abundante reportório de exemplos da Húbris e de Nemesis nos quais perfila a híbrida condição humana (Prometeu rouba o fogo aos deuses ficando amarrado eternamente a uma rocha e servindo de alimento a uma águia; Ícaro sobe alto derretendo as asas de cera; Narciso apaixonado sucumbe à sua própria imagem; Édipo incestuoso cega-se para não ver o mundo).
No estudo acerca da húbris de 1994, depois do breve preâmbulo dedicado à mitologia, Ronfeldt apresenta algumas personalidades históricas que classifica como agentes messiânicos portadores do complexo Hubris-Nemesis, entre eles estavam Fidel Castro, Saddam Hussein e Kadaffi. A futurologia desta época – que vai da Guerra Fria ao 11 de Setembro – está convicta que a eliminação das ameaças inaugurará um período de paz perpétua. Essa convicção, suportada pelo poderio militar, levou Francis Fukuyama (um dos mais estimulantes intelectuais do século e conselheiro de George W. Bush) a anunciar precocemente, no final dos anos 90, a famosa tese do fim da história e do último homem, quando o planeta inteiro – pacificado e lúdico - se convertesse numa global democracia liberal nas mãos de exímios gabinetes de gestão. O mundo imaginado como um recinto de prosperidade e recreio, liberto de agentes messiânicos portadores do complexo Húbris-Nemesis.
Mas eis que um pressentimento hubrístico sobressaltou a vida dos mortais. A percepção e imediata consequência das mudanças climáticas e do aquecimento global, a extinção galopante das espécies, a desflorestação e o monocultivo, a hiperprodução de plástico e desperdício, a escassez de água, tudo isso multiplicado pela pressão da expansão humana no planeta e uma cultura global alicerçada no direito inquestionável ao consumo e ao turismo infinito, por sua vez alicerçado na deslocação e no petróleo – tudo prerrogativas de um bom viver ocidental, para além do bem e do mal.
Ao calibrar a escala do “pensar o impensável” aos desafios do novo milénio, a futurologia descobriu debaixo da sua lupa uma nova velha ameaça: não se trata de nenhuma personalidade histórica com um complexo messiânico, mas da própria espécie humana em toda a sua extensão. Simultaneamente ameaçada e ameaçadora, o bicho humano surge ele mesmo como hospedeiro da húbris. Os humanos descobrem-se a si mesmos – enquanto espécie - como uma força geofísica à escala planetária desafiando o mar, a terra, os rios, a atmosfera e todos os seres vivos no planeta. Milhares de milhões de anos de evolução adaptativa resultam no recente advento da espécie humana, cujo impacto da sua existência e engenho resulta em uma visão distópica inédita, uma disrupção sistémica e em todas as frentes.
A advento da bomba atómica e do terrorismo são epifenómenos, acontecimentos pontuais, de um advento muito mais vasto e contínuo – o Antropoceno.
O Relógio do Juízo Final, criado em 1947 sob a ameaça da bomba atómica, nunca esteve longe da Meia-Noite, a hora simbólica do colapso. A partir de 2007 o painel de especialista que fazem o acerto da hora, passou a incluir no boletim, disrupções relacionadas com as alterações climáticas.
O planeta não se salvará pela irradicação de titãs maléficos que nele proliferam. A urgência da emancipação da humanidade chega-nos na forma de ultimato geracional. Agir no planeta, mas a partir de um sujeito histórico inédito, a espécie, para a qual não há ainda narrador. A escala de acção e de pensamento é inapreensível pelo sujeito comum e individual. Assim, na mesma proporção de um hiper-sujeito, surge em relação um hiper-objecto. O sujeito que fala do clima, do planeta ou da Inteligência Artificial (hiper-objectos), terá de ser ele também um hiper-sujeito.
Os desafios que se levantam são inéditos e exigem pensar e desenhar o mundo a partir de uma brutal novidade. Já não se trata de preservar o homem, mas de superar o homem. Eis um pensamento nietzscheano tão mal compreendido e tantas vezes citado pelas piores razões, o sobre-humano.
O legado militar, o controlo, a vigilância e a paranoia, servem estratégias de sobrevivência e dominação, que não conduzem à superação do homem nem ao viver comum na casa mãe.
Oriunda da teoria dos jogos e da computação moderna, a futurologia do mundo contemporâneo está, porém, nos antípodas do Iluminismo – o esplendor da Modernidade – cujo optimismo tão exacerbado surge satirizado na famosa novela de Voltaire, Cândido. Perante os inumeráveis males do mundo o protagonista de nome Pangloss revela grande optimismo e alegria insistindo que vivemos no melhor dos mundos possíveis. O visado nas entre linhas é o matemático Leibniz que atendendo ao problema do mal no mundo concebe um Deus que, na sua infinita álgebra e bondade, criou a mais favorável realidade entre todas as possíveis. Esse mundo, o melhor dos mundos possíveis, está longe do mundo orfão de Deus a cinco minutos do fim de acordo com o Relógio do Juízo Final.
O humano deixou de ser o espectador privilegiado da grande teodiceia. A coexistência humana expressa-se hoje na forma de delito. No sonho da Razão já não há lugar para a utopia. É impreterível pensar e desenhar a vida em comum, não apenas uns com os outros, mas também com a floresta, com o mar, com a montanha, com o céu, com os bichos e com as pedras.
Está lá tudo na sátira de Voltaire. Tudo de mau acontece a Cândido que lá vai ouvindo os argumentos de Pangloss justificando que vivemos no melhor dos mundos possíveis. Porém, esse exercício de boa vontade e futurologia invertida, baseada na ideia de um Deus criador benévolo omnisciente e omnipresente, não convenceu completamente Cândido. Num tom oracular, com certa ingenuidade e genialidade, rebate todos os argumentos de Pangloss com a frase que será no futuro a epígrafe do futuro: “Tudo isso é muito bonito, mas há que cuidar do nosso jardim”.